CARTA APOSTÓLICA Ano da Vida Consagrada
dezembro 03, 2014
CARTA
APOSTÓLICA
Carta apostólica do Papa Francisco às pessoas consagradas para proclamação do Ano da Vida Consagrada
Carta apostólica do Papa Francisco às pessoas consagradas para proclamação do Ano da Vida Consagrada
Santa
Sé
Consagradas e consagrados caríssimos!
Escrevo-vos como Sucessor de Pedro, a
quem o Senhor Jesus confiou a tarefa de confirmar na fé os seus irmãos (cf. Lc
22, 32), e escrevo-vos como vosso irmão, consagrado a Deus como vós.
Juntos, damos graças ao Pai, que nos
chamou para seguir Jesus na plena adesão ao seu Evangelho e no serviço da
Igreja e derramou nos nossos corações o Espírito Santo que nos dá alegria e nos
faz dar testemunho ao mundo inteiro do seu amor e da sua misericórdia.
Fazendo-me eco do sentir de muitos de
vós e da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de
Vida Apostólica, por ocasião do quinquagésimo aniversário da Constituição
dogmática Lumen gentium sobre a Igreja, que no capítulo VI trata dos
religiosos, bem como do Decreto Perfectae caritatis sobre a renovação da vida
religiosa, decidi proclamar um Ano da Vida Consagrada. Terá início no dia 30 do
corrente mês de Novembro, I Domingo de Advento, e terminará com a festa da
Apresentação de Jesus no Templo a 2 de Fevereiro de 2016.
Depois de ter ouvido a Congregação
para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica,
indiquei como objectivos para este Ano os mesmos que São João Paulo II
propusera à Igreja no início do terceiro milénio, retomando, de certa forma,
aquilo que já havia indicado na Exortação pós-sinodal Vita consecrata: «Vós não
tendes apenas uma história gloriosa para recordar e narrar, mas uma grande
história a construir! Olhai para o futuro, para o qual vos projecta o Espírito
a fim de realizar convosco ainda coisas maiores» (n. 110).
– I
–
Os
objectivos do Ano da Vida Consagrada
1. O primeiro objectivo é olhar com
gratidão o passado. Cada um dos nossos Institutos provém duma rica história
carismática. Nas suas origens, está presente a acção de Deus que, no seu
Espírito, chama algumas pessoas para seguirem de perto a Cristo, traduzirem o
Evangelho numa forma particular de vida, lerem com os olhos da fé os sinais dos
tempos, responderem criativamente às necessidades da Igreja. Depois a
experiência dos inícios cresceu e desenvolveu-se, tocando outros membros em
novos contextos geográficos e culturais, dando vida a modos novos de
implementar o carisma, a novas iniciativas e expressões de caridade apostólica.
É como a semente que se torna árvore alargando os seus ramos.
Neste Ano, será oportuno que cada
família carismática recorde os seus inícios e o seu desenvolvimento histórico,
para agradecer a Deus que deste modo ofereceu à Igreja tantos dons que a tornam
bela e habilitada para toda a boa obra (cf. Lumen gentium, 12).
Repassar a própria história é
indispensável para manter viva a identidade e também robustecer a unidade da
família e o sentido de pertença dos seus membros. Não se trata de fazer
arqueologia nem cultivar inúteis nostalgias, mas de repercorrer o caminho das
gerações passadas para nele captar a centelha inspiradora, os ideais, os
projectos, os valores que as moveram, a começar dos Fundadores, das Fundadoras
e das primeiras comunidades. É uma forma também para se tomar consciência de
como foi vivido o carisma ao longo da história, que criatividade desencadeou,
que dificuldades teve de enfrentar e como foram superadas. Poder-se-á descobrir
incoerências, fruto das fraquezas humanas, e talvez mesmo qualquer esquecimento
de alguns aspectos essenciais do carisma. Tudo é instrutivo, tornando-se
simultaneamente apelo à conversão. Narrar a própria história é louvar a Deus e
agradecer-Lhe por todos os seus dons.
De modo particular, agradecemos-Lhe
por estes últimos 50 anos após o Concílio Vaticano II, que representou uma
«ventania» do Espírito Santo sobre toda a Igreja; graças ao Concílio, de facto,
a vida consagrada empreendeu um fecundo caminho de renovação, o qual, com as
suas luzes e sombras, foi um tempo de graça, marcado pela presença do Espírito.
Que este Ano da Vida Consagrada seja
ocasião também para confessar, com humildade e simultaneamente grande confiança
em Deus Amor (cf. 1 Jo 4, 8), a própria fragilidade e para a viver como
experiência do amor misericordioso do Senhor; ocasião para gritar ao mundo com
força e testemunhar com alegria a santidade e a vitalidade presentes na maioria
daqueles que foram chamados a seguir Cristo na vida consagrada.
2. Além disso, este Ano chama-nos a
viver com paixão o presente. A lembrança agradecida do passado impele-nos, numa
escuta atenta daquilo que o Espírito diz hoje à Igreja, a implementar de
maneira cada vez mais profunda os aspectos constitutivos da nossa vida
consagrada.
Desde os inícios do primeiro
monaquismo até às «novas comunidades» de hoje, cada forma de vida consagrada
nasceu da chamada do Espírito para seguir a Cristo segundo o ensinamento do
Evangelho (cf. Perfectae caritatis, 2). Para os Fundadores e as Fundadoras, a
regra em absoluto foi o Evangelho; qualquer outra regra pretendia apenas ser
expressão do Evangelho e instrumento para o viver em plenitude. O seu ideal era
Cristo, aderir inteiramente a Ele podendo dizer com Paulo: «Para mim, viver é
Cristo» (Flp 1, 21); os votos tinham sentido apenas para implementar este seu
amor apaixonado.
A pergunta que somos chamados a pôr
neste Ano é se e como nos deixamos, também nós, interpelar pelo Evangelho; se
este é verdadeiramente o «vademecum» para a vida de cada dia e para as opções
que somos chamados a fazer. Isto é exigente e pede para ser vivido com
radicalismo e sinceridade. Não basta lê-lo (e no entanto a leitura e o estudo
permanecem de extrema importância), nem basta meditá-lo (e fazemo-lo com
alegria todos os dias); Jesus pede-nos para pô-lo em prática, para viver as
suas palavras.
Jesus – devemos perguntar-nos ainda –
é verdadeiramente o primeiro e o único amor, como nos propusemos quando
professamos os nossos votos? Só em caso afirmativo, poderemos – como é nosso
dever – amar verdadeira e misericordiosamente cada pessoa que encontramos no
nosso caminho, porque teremos aprendido d’Ele o que é o amor e como amar:
saberemos amar, porque teremos o seu próprio coração.
Os nossos Fundadores e Fundadoras
sentiram em si mesmos a compaixão que se apoderava de Jesus quando via as
multidões como ovelhas extraviadas sem pastor. Tal como Jesus, movido por tal
compaixão, comunicou a sua palavra, curou os doentes, deu o pão para comer,
ofereceu a sua própria vida, assim também os Fundadores se puseram ao serviço
da humanidade, à qual eram enviados pelo Espírito servindo-a dos mais diversos
modos: com a intercessão, a pregação do Evangelho, a catequese, a instrução, o
serviço aos pobres, aos doentes… A inventiva da caridade não conheceu limites e
soube abrir inúmeras estradas para levar o sopro da Evangelho às culturas e aos
sectores sociais mais diversos.
O Ano da Vida Consagrada
questiona-nos sobre a fidelidade à missão que nos foi confiada. Os nossos
serviços, as nossas obras, a nossa presença correspondem àquilo que o Espírito
pediu aos nossos Fundadores, sendo adequados para encalçar as suas finalidades
na sociedade e na Igreja actual? Há algo que devemos mudar? Temos a mesma
paixão pelo nosso povo, solidarizamo-nos com ele até ao ponto de partilhar as
suas alegrias e sofrimentos, a fim de podermos compreender verdadeiramente as
suas necessidades e contribuir com a nossa parte para lhes dar resposta? Como a
seu tempo pedia São João Paulo II, «a mesma generosidade e abnegação que
impeliram os Fundadores devem levar-vos a vós, seus filhos espirituais, a
manter vivos os seus carismas, que continuam – com a mesma força do Espírito
que os suscitou – a enriquecer-se e adaptar-se, sem perder o seu carácter
genuíno, para se porem ao serviço da Igreja e levarem à plenitude a implantação
do seu Reino»[1].
Ao recordar as origens, há que
evidenciar mais um componente do projecto de vida consagrada. Os Fundadores e
as Fundadoras viviam fascinados pela unidade dos Doze ao redor de Jesus, pela
comunhão que caracterizava a primeira comunidade de Jerusalém. Cada um deles,
ao dar vida à sua comunidade, pretendeu reproduzir tais modelos evangélicos,
formar um só coração e uma só alma, gozar da presença do Senhor (cf. Perfectae
caritatis, 15).
Viver com paixão o presente significa
tornar-se «peritos em comunhão», ou seja, «testemunhas e artífices daquele
“projecto de comunhão” que está no vértice da história do homem segundo
Deus»[2]. Numa sociedade marcada pelo conflito, a convivência difícil entre
culturas diversas, a prepotência sobre os mais fracos, as desigualdades, somos
chamados a oferecer um modelo concreto de comunidade que, mediante o
reconhecimento da dignidade de cada pessoa e a partilha do dom que cada um é
portador, permita viver relações fraternas.
Por isso, sede mulheres e homens de
comunhão, marcai presença com coragem onde há disparidades e tensões, e sede
sinal credível da presença do Espírito que infunde nos corações a paixão por
todos serem um só (cf. Jo 17, 21). Vivei a mística do encontro: a capacidade de
ouvir atentamente as outras pessoas; «a capacidade de procurar juntos o
caminho, o método»[3], deixando-vos iluminar pelo relacionamento de amor que se
verifica entre as três Pessoas divinas (cf. 1 Jo 4, 8) e tomando-o como modelo
de toda a relação interpessoal.
3. Abraçar com esperança o futuro é o
terceiro objectivo que se pretende neste Ano. Conhecemos as dificuldades que
enfrenta a vida consagrada nas suas diversas formas: a diminuição das vocações
e o envelhecimento, especialmente no mundo ocidental, os problemas económicos
na sequência da grave crise financeira mundial, os desafios da
internacionalidade e da globalização, as insídias do relativismo, a
marginalização e a irrelevância social… É precisamente nestas incertezas, que
partilhamos com muitos dos nossos contemporâneos, que se actua a nossa
esperança, fruto da fé no Senhor da história que continua a repetir-nos: «Não
terás medo (…), pois Eu estou contigo» (Jr 1, 8).
A esperança de que falamos não se
funda sobre números ou sobre as obras, mas sobre Aquele em quem pusemos a nossa
confiança (cf. 2 Tm 1, 12) e para quem «nada é impossível» (Lc 1, 37). Esta é a
esperança que não desilude e que permitirá à vida consagrada continuar a
escrever uma grande história no futuro, para o qual se deve voltar o nosso
olhar, cientes de que é para ele que nos impele o Espírito Santo a fim de
continuar a fazer, connosco, grandes coisas.
Não cedais à tentação dos números e
da eficiência, e menos ainda à tentação de confiar nas vossas próprias forças.
Com atenta vigilância, perscrutai os horizontes da vossa vida e do momento
actual. Repito-vos com Bento XVI: «Não vos unais aos profetas de desventura,
que proclamam o fim ou a insensatez da vida consagrada na Igreja dos nossos
dias; pelo contrário, revesti-vos de Jesus Cristo e muni-vos das armas da luz –
como exorta São Paulo (cf. Rm 13, 11-14) –, permanecendo acordados e
vigilantes»[4]. Prossigamos, retomando sempre o nosso caminho com confiança no
Senhor.
Dirijo-me sobretudo a vós, jovens.
Sois o presente, porque viveis já activamente dentro dos vossos Institutos,
prestando uma decisiva contribuição com o frescor e a generosidade da vossa
opção. Ao mesmo tempo sois o seu futuro, porque em breve sereis chamados a
tomar nas vossas mãos a liderança da animação, da formação, do serviço, da
missão. Este Ano há-de ver-vos protagonistas no diálogo com a geração que vai à
vossa frente; podereis, em comunhão fraterna, enriquecer-vos com a sua
experiência e sabedoria e, ao mesmo tempo, repropor-lhe o ideal que conheceu no
seu início, oferecer o ímpeto e o frescor do vosso entusiasmo, a fim de elaborardes
em conjunto novos modos de viver o Evangelho e respostas cada vez mais
adequadas às exigências de testemunho e de anúncio.
Fico feliz em saber que ides ter
ocasiões para vos encontrardes entre vós, jovens dos diferentes Institutos. Que
o encontro se torne caminho habitual de comunhão, de apoio mútuo, de unidade.
– II
–
As
expectativas para o Ano da Vida Consagrada
Que espero eu, em particular, deste
Ano de graça da vida consagrada?
1. Que seja sempre verdade aquilo que
eu disse uma vez: «Onde estão os religiosos, há alegria». Somos chamados a
experimentar e mostrar que Deus é capaz de preencher o nosso coração e
fazer-nos felizes sem necessidade de procurar noutro lugar a nossa felicidade,
que a autêntica fraternidade vivida nas nossas comunidades alimenta a nossa
alegria, que a nossa entrega total ao serviço da Igreja, das famílias, dos
jovens, dos idosos, dos pobres nos realiza como pessoas e dá plenitude à nossa
vida.
Que entre nós não se vejam rostos
tristes, pessoas desgostosas e insatisfeitas, porque «um seguimento triste é um
triste seguimento». Também nós, como todos os outros homens e mulheres,
sentimos dificuldades, noites do espírito, desilusões, doenças, declínio das
forças devido à velhice. Mas, nisto mesmo, deveremos encontrar a «perfeita
alegria», aprender a reconhecer o rosto de Cristo, que em tudo Se fez
semelhante a nós e, consequentemente, sentir a alegria de saber que somos
semelhantes a Ele que, por nosso amor, não Se recusou a sofrer a cruz.
Numa sociedade que ostenta o culto da
eficiência, da saúde, do sucesso e que marginaliza os pobres e exclui os
«perdedores», podemos testemunhar, através da nossa vida, a verdade destas
palavras da Escritura: «Quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Cor 12,
10).
Bem podemos aplicar à vida consagrada
aquilo que escrevi na Exortação apostólica Evangelii gaudium, citando uma
homilia de Bento XVI: «A Igreja não cresce por proselitismo, mas por atracção»
(n. 14). É verdade! A vida consagrada não cresce, se organizarmos belas
campanhas vocacionais, mas se as jovens e os jovens que nos encontram se
sentirem atraídos por nós, se nos virem homens e mulheres felizes! De igual
forma, a eficácia apostólica da vida consagrada não depende da eficiência e da
força dos seus meios. É a vossa vida que deve falar, uma vida da qual
transparece a alegria e a beleza de viver o Evangelho e seguir a Cristo.
O que disse aos Movimentos eclesiais,
na passada Vigília de Pentecostes, repito-o aqui para vós também:
«Fundamentalmente, o valor da Igreja é viver o Evangelho e dar testemunho da
nossa fé. A Igreja é sal da terra, é luz do mundo; é chamada a tornar presente
na sociedade o fermento do Reino de Deus; e fá-lo, antes de mais nada, por meio
do seu testemunho: o testemunho do amor fraterno, da solidariedade, da partilha»
(18 de Maio de 2013).
2. Espero que «desperteis o mundo»,
porque a nota característica da vida consagrada é a profecia. Como disse aos
Superiores Gerais, «a radicalidade evangélica não é própria só dos religiosos:
é pedida a todos. Mas os religiosos seguem o Senhor de uma maneira especial, de
modo profético». Esta é a prioridade que agora se requer: «ser profetas que
testemunham como viveu Jesus nesta terra (…). Um religioso não deve jamais
renunciar à profecia» (29 de Novembro de 2013).
O profeta recebe de Deus a capacidade
de perscrutar a história em que vive e interpretar os acontecimentos: é como
uma sentinela que vigia durante a noite e sabe quando chega a aurora (cf. Is
21, 11-12). Conhece a Deus e conhece os homens e as mulheres, seus irmãos e
irmãs. É capaz de discernimento e também de denunciar o mal do pecado e as
injustiças, porque é livre, não deve responder a outros senhores que não seja a
Deus, não tem outros interesses além dos de Deus. Habitualmente o profeta está
da parte dos pobres e indefesos, porque sabe que o próprio Deus está da parte
deles.
Deste modo espero que saibais, sem
vos perder em vãs «utopias», criar «outros lugares» onde se viva a lógica
evangélica do dom, da fraternidade, do acolhimento da diversidade, do amor
recíproco. Mosteiros, comunidades, centros de espiritualidade, cidadelas,
escolas, hospitais, casas-família e todos aqueles lugares que a caridade e a
criatividade carismática fizeram nascer – e ainda farão nascer, com nova
criatividade –, devem tornar-se cada vez mais o fermento para uma sociedade
inspirada no Evangelho, a «cidade sobre o monte» que manifesta a verdade e a
força das palavras de Jesus.
Às vezes, como aconteceu com Elias e
Jonas, pode vir a tentação de fugir, de subtrair-se ao dever de profeta, porque
é demasiado exigente, porque se está cansado, desiludido com os resultados. Mas
o profeta sabe que nunca está sozinho. Também a nós, como fez a Jeremias, Deus
assegura: «Não terás medo (…), pois Eu estou contigo para te livrar» (Jr 1, 8).
3. Os religiosos e as religiosas,
como todas as outras pessoas consagradas, são chamados a ser «peritos em
comunhão». Assim, espero que a «espiritualidade da comunhão», indicada por São
João Paulo II, se torne realidade e que vós estejais na vanguarda abraçando «o
grande desafio que nos espera» neste novo milénio: «fazer da Igreja a casa e a
escola da comunhão»[5]. Estou certo de que, neste Ano, trabalhareis a sério
para que o ideal de fraternidade perseguido pelos Fundadores e pelas Fundadoras
cresça, nos mais diversos níveis, como que em círculos concêntricos.
A comunhão é praticada, antes de mais
nada, dentro das respectivas comunidades do Instituto. A este respeito,
convido-vos a reler frequentes intervenções minhas onde não me canso de repetir
que críticas, bisbilhotices, invejas, ciúmes, antagonismos são comportamentos
que não têm direito de habitar nas nossas casas. Mas, posta esta premissa, o
caminho da caridade que se abre diante de nós é quase infinito, porque se trata
de buscar a aceitação e a solicitude recíprocas, praticar a comunhão dos bens
materiais e espirituais, a correcção fraterna, o respeito pelas pessoas mais
frágeis… É «a “mística” de viver juntos» que faz da nossa vida «uma
peregrinação sagrada»[6]. Tendo em conta que as nossas comunidades se tornam
cada vez mais internacionais, devemos questionar-nos também sobre o
relacionamento entre as pessoas de culturas diferentes. Como consentir a cada
um de se exprimir, ser acolhido com os seus dons específicos, tornar-se
plenamente co-responsável?
Além disso, espero que cresça a
comunhão entre os membros dos diferentes Institutos. Não poderia este Ano ser
ocasião de sair, com maior coragem, das fronteiras do próprio Instituto para se
elaborar em conjunto, a nível local e global, projectos comuns de formação, de
evangelização, de intervenções sociais? Poder-se-á assim oferecer, de forma
mais eficaz, um real testemunho profético. A comunhão e o encontro entre
diferentes carismas e vocações é um caminho de esperança. Ninguém constrói o
futuro isolando-se, nem contando apenas com as próprias forças, mas
reconhecendo-se na verdade de uma comunhão que sempre se abre ao encontro, ao
diálogo, à escuta, à ajuda mútua e nos preserva da doença da
auto-referencialidade.
Ao mesmo tempo, a vida consagrada é
chamada a procurar uma sinergia sincera entre todas as vocações na Igreja, a
começar pelos presbíteros e os leigos, a fim de «fazer crescer a
espiritualidade da comunhão, primeiro no seu seio e depois na própria
comunidade eclesial e para além dos seus confins»[7].
4. Espero ainda de vós o mesmo que
peço a todos os membros da Igreja: sair de si mesmo para ir às periferias
existenciais. «Ide pelo mundo inteiro» foi a última palavra que Jesus dirigiu
aos seus e que continua hoje a dirigir a todos nós (cf. Mc 16, 15). A
humanidade inteira aguarda: pessoas que perderam toda a esperança, famílias em
dificuldade, crianças abandonadas, jovens a quem está vedado qualquer futuro,
doentes e idosos abandonados, ricos saciados de bens mas com o vazio no
coração, homens e mulheres à procura do sentido da vida, sedentos do divino…
Não vos fecheis em vós mesmos, não
vos deixeis asfixiar por pequenas brigas de casa, não fiqueis prisioneiros dos
vossos problemas. Estes resolver-se-ão se sairdes para ajudar os outros a
resolverem os seus problemas, anunciando-lhes a Boa Nova. Encontrareis a vida
dando a vida, a esperança dando esperança, o amor amando.
De vós espero gestos concretos de
acolhimento dos refugiados, de solidariedade com os pobres, de criatividade na
catequese, no anúncio do Evangelho, na iniciação à vida de oração.
Consequentemente almejo a racionalização das estruturas, a reutilização das
grandes casas em favor de obras mais cônsonas às exigências actuais da
evangelização e da caridade, a adaptação das obras às novas necessidades.
5. Espero que cada forma de vida
consagrada se interrogue sobre o que pedem Deus e a humanidade de hoje.
Os mosteiros e os grupos de
orientação contemplativa poderiam encontrar-se entre si ou conectar-se nos mais
variados modos, para trocarem entre si as experiências sobre a vida de oração,
o modo como crescer na comunhão com toda a Igreja, como apoiar os cristãos
perseguidos, como acolher e acompanhar as pessoas que andam à procura duma vida
espiritual mais intensa ou necessitam de um apoio moral ou material.
O mesmo poderão fazer os Institutos
caritativos, dedicados ao ensino, à promoção da cultura, aqueles que estão
lançados no anúncio do Evangelho ou desempenham particulares serviços
pastorais, os Institutos Seculares com a sua presença capilar nas estruturas
sociais. A inventiva do Espírito gerou modos de vida e obras tão diferentes que
não podemos facilmente catalogá-los ou inseri-los em esquemas pré-fabricados.
Por isso, não consigo referir cada uma das inúmeras formas carismáticas. Mas,
neste Ano, ninguém deveria subtrair-se a um sério controle sobre a sua presença
na vida da Igreja e sobre o seu modo de responder às incessantes e novas
solicitações que se levantam ao nosso redor, ao clamor dos pobres.
Só com esta atenção às necessidades
do mundo e na docilidade aos impulsos do Espírito é que este Ano da Vida
Consagrada se tornará um autêntico kairòs, um tempo de Deus rico de graças e de
transformação.
–
III –
Os
horizontes do Ano da Vida Consagrada
1. Com esta minha carta, além das pessoas
consagradas, dirijo-me aos leigos que, com elas, partilham ideais, espírito,
missão. Alguns Institutos religiosos possuem uma antiga tradição a tal
respeito, outros uma experiência mais recente. Na realidade, à volta de cada
família religiosa, bem como das Sociedades de Vida Apostólica e dos próprios
Institutos Seculares, está presente uma família maior, a «família carismática»,
englobando os vários Institutos que se reconhecem no mesmo carisma e sobretudo
os cristãos leigos que se sentem chamados, precisamente na sua condição laical,
a participar da mesma realidade carismática.
Encorajo-vos também a vós, leigos, a
viver este Ano da Vida Consagrada como uma graça que pode tornar-vos mais
conscientes do dom recebido. Celebrai-o com toda a «família», para crescerdes e
responderdes juntos aos apelos do Espírito na sociedade actual. Em determinadas
ocasiões, quando os consagrados de vários Institutos se reunirem uns com os
outros neste Ano, procurai estar presente também vós como expressão do único
dom de Deus, a fim de conhecer as experiências das outras famílias
carismáticas, dos outros grupos de leigos e assim vos enriquecerdes e
sustentardes mutuamente.
2. O Ano da Vida Consagrada não diz
respeito apenas às pessoas consagradas, mas à Igreja inteira. Assim dirijo-me a
todo o povo cristão, para que tome cada vez maior consciência do dom que é a
presença de tantas consagradas e consagrados, herdeiros de grandes Santos que
fizeram a história do cristianismo. Que seria a Igreja sem São Bento e São
Basílio, sem Santo Agostinho e São Bernardo, sem São Francisco e São Domingos,
sem Santo Inácio de Loyola e Santa Teresa de Ávila, sem Santa Ângela Merícia e
São Vicente de Paulo? E a lista tornar-se-ia quase infinita, até São João
Bosco, a Beata Teresa de Calcutá. O Beato Paulo VI afirmava: «Sem este sinal
concreto, a caridade que anima a Igreja inteira correria o risco de se
resfriar, o paradoxo salvífico do Evangelho de se atenuar, o “sal” da fé de se
diluir num mundo em fase de secularização» (Evangelica testificatio, 3).
Por isso, convido todas as
comunidades cristãs a viverem este Ano, procurando antes de mais nada agradecer
ao Senhor e, reconhecidas, recordar os dons que foram recebidos, e ainda
recebemos, por meio da santidade dos Fundadores e das Fundadoras e da
fidelidade de tantos consagrados ao seu próprio carisma. A todos vos convido a
estreitar-vos ao redor das pessoas consagradas, rejubilar com elas, partilhar
as suas dificuldades, colaborar com elas, na medida do possível, para a
prossecução do seu serviço e da sua obra, que são aliás os da Igreja inteira.
Fazei-lhes sentir o carinho e o encorajamento de todo o povo cristão.
Bendigo o Senhor pela feliz
coincidência do Ano da Vida Consagrada com o Sínodo sobre a família. Família e
vida consagrada são vocações portadoras de riqueza e graça para todos, espaços
de humanização na construção de relações vitais, lugares de evangelização.
Podem-se ajudar uma à outra.
3. Com esta minha carta, ouso
dirigir-me também às pessoas consagradas e aos membros de fraternidades e
comunidades pertencentes a Igrejas de tradição diversa da católica. O
monaquismo é um património da Igreja indivisa, bem vivo até agora quer nas
Igrejas ortodoxas quer na Igreja católica. Nele bem como nas sucessivas
experiências do tempo em que a Igreja do Ocidente ainda estava unida, se
inspiram iniciativas análogas surgidas no âmbito das Comunidades eclesiais da
Reforma, tendo estas continuado a gerar no seu seio novas expressões de
comunidades fraternas e de serviço.
A Congregação para os Institutos de
Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica tem em programa iniciativas
para fazer encontrar os membros pertencentes a experiências de vida consagrada
e fraterna das diversas Igrejas. Encorajo calorosamente estes encontros, para
que cresça o conhecimento mútuo, a estima, a cooperação recíproca, de modo que
o ecumenismo da vida consagrada sirva de ajuda para o caminho mais amplo rumo à
unidade entre todas as Igrejas.
4. Não podemos esquecer também que o
fenómeno do monaquismo e doutras expressões de fraternidade religiosa está
presente em todas as grandes religiões. Não faltam experiências, mesmo
consolidadas, de diálogo inter-monástico da Igreja católica com algumas das
grandes tradições religiosas. Faço votos de que o Ano da Vida Consagrada seja
ocasião para avaliar o caminho percorrido, sensibilizar as pessoas consagradas
neste campo, questionar-nos sobre os novos passos a dar para um conhecimento
recíproco cada vez mais profundo e uma colaboração crescente em muitos âmbitos
comuns do serviço à vida humana.
Caminhar juntos é sempre um
enriquecimento e pode abrir caminhos novos nas relações entre povos e culturas
que, neste período, aparecem carregadas de dificuldades.
5. Por fim dirijo-me, de modo
particular, aos meus irmãos no episcopado. Que este Ano seja uma oportunidade
para acolher, cordial e jubilosamente, a vida consagrada como um capital
espiritual que contribua para o bem de todo o corpo de Cristo (cf. Lumen
gentium, 43) e não só das famílias religiosas. «A vida consagrada é dom feito à
Igreja: nasce na Igreja, cresce na Igreja, está totalmente orientada para a
Igreja»[8]. Por isso, enquanto dom à Igreja, não é uma realidade isolada ou
marginal, mas pertence intimamente a ela, situa-se no próprio coração da
Igreja, como elemento decisivo da sua missão, já que exprime a natureza íntima
da vocação cristã e a tensão de toda a Igreja-Esposa para a união com o único
Esposo; portanto «está inabalavelmente ligada à sua vida e santidade» (Ibid.,
44).
Neste contexto, convido-vos, a vós
Pastores das Igrejas particulares, a uma especial solicitude em promover nas
vossas comunidades os diferentes carismas, tanto os históricos como os novos
carismas, apoiando, animando, ajudando no discernimento, acompanhando com
ternura e amor as situações de sofrimento e fraqueza em que se possam encontrar
alguns consagrados, e sobretudo esclarecendo com o vosso ensino o povo de Deus
sobre o valor da vida consagrada, de modo a fazer resplandecer a sua beleza e
santidade na Igreja.
A Maria, Virgem da escuta e da
contemplação, primeira discípula do seu amado Filho, confio este Ano da Vida
Consagrada. Para Ela, filha predilecta do Pai e revestida de todos os dons da
graça, olhamos como modelo insuperável de seguimento no amor a Deus e no
serviço do próximo.
Agradecido desde já, com todos vós,
pelos dons de graça e de luz com que o Senhor quiser enriquecer-nos,
acompanho-vos a todos com a Bênção Apostólica.
Vaticano, 21 de Novembro – Festa da
Apresentação de Maria – do ano 2014.
Francisco
[1] Carta ap. Os caminhos do
Evangelho, aos Religiosos e às Religiosas da América Latina, por ocasião do V
centenário da Evangelização do Novo Mundo (29 de Junho de 1990), 26:
L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 29/VII /1990), 360.
[2] Congregação para os Institutos de
Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, Doc. Religiosos e promoção
humana (12 de Agosto de 1980), 24: L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de
18/I/1981), 31.
[3] Discurso aos reitores e
estudantes dos Pontifícios Colégios e Internatos de Roma (12 de Maio de 2014):
L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 22/V/2014), 11.
[4] Homilia na Festa da Apresentação
de Jesus no Templo (2 de Fevereiro de 2013): L’Osservatore Romano (ed.
portuguesa de 10/II/2013), 11.
[5] Carta ap. Novo millennio ineunte
(6 de Janeiro de 2001), 43: L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 13/I/2001),
25.
[6] Carta ap. Evangelii gaudium (24
de Novembro de 2013), 87.
[7] João Paulo II, Exort. ap.
pós-sinodal Vita consecrata (25 de Março de 1996), 51: L’Osservatore Romano
(ed. portuguesa de 30/III/1996), 149.
[8] D. Jorge Mário Bergoglio,
Intervenção no Sínodo sobre a vida consagrada e a sua missão na Igreja e no
mundo (XVI congregação geral, 13 de Outubro de 1994).
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